O isolamento social vivido pelos brasileiros das grandes
metrópoles em decorrência da pandemia do coronavírus chegou como uma novidade
cruel, menos para os que habitam os grotões nordestinos. Viver ilhado,
entretanto, não é sinônimo de falta de discernimento nem de bom senso. O
claridão na caatinga se abre muitas vezes de gente simples, mas que tem muito o
que ensinar ao Brasil.
É o caso da jovem Antônia dos Santos, 19 anos, moradora
do povoado Mundo Novo, no Sertão do Estado. Desde o primeiro ano do Ensino
Médio, ela faz o teste do Enem para se preparar. Numa carta de próprio punho,
sem nenhum erro do bom português, ela mandou um duro recado ao ministro da
Educação, Abraham Weintraub, para que adie o quanto antes a prova do Enem deste
ano por causa dos estragos causados pelo Covid-19.
“Se o senhor pensar melhor, pelo lado de estudantes, vai
perceber que o Enem pode ser adiado para o próximo ano. Eu queria que o governo
revisse isso, que não ache que é apenas uma gripezinha, que olhasse para as
pessoas carentes. O senhor tem que considerar toda essa situação que estamos
vivendo. É uma pandemia, ministro”, disse a sertaneja, manifestando para o País
o sentimento consensual em todo brasileiro hoje.
Antônia é estudiosa, dedicada e antenada com o mundo,
apesar das dificuldades de acesso à internet onde mora. Lá, pega diariamente um
pau-de-arara para chegar até o povoado vizinho de Caruá, a cerca de uma hora,
onde fica sua escola. Seu grande sonho é ser professora de literatura. Com a
pandemia, passou a ter aulas online apenas uma vez por semana e viu as chances
de ingressar na universidade diminuírem drasticamente. Na sua turma, 25% dos
alunos não têm nenhum acesso à internet. Boa parte do restante, como ela,
possui apenas o celular e um wi-fi de conexão ruim. Tudo isso, ela retrata na
carta ao ministro. “Meu nome é Antônio Odair dos Santos, mas prefiro que me
chamem de Antonia. Assim mesmo, no feminino. Tenho 19 anos e faço o 3º ano do
ensino médio em uma escola pública no Caruá, um povoado da zona rural de
Serrita, no sertão do Pernambuco. Eu sempre me dediquei aos estudos porque
penso em um futuro próspero e sei que só vou conseguir isso se estudar. Quero
fazer faculdade de Letras em uma universidade pública para ser professora. Me
identifico com português e adoro literatura. Meu grande sonho é me formar e ter
um emprego digno. Me imagino daqui a alguns anos em uma sala de aula,
ensinando. É esse o meu sonho. Quanto mais eu estudar, mais perto fico dele.
Desde quando comecei o ensino médio, eu fazia a prova do Enem para me sentir
mais preparada quando chegasse no 3º ano. Agora tenho ideia de como é a prova e
estava ansiosa para fazer logo. Até pensei, a princípio, que o exame não
deveria ser adiado por causa do coronavírus, mas, pensando nas dificuldades que
eu e meus colegas temos passado para estudar, mudei de ideia. Acho que se o
senhor souber da nossa situação, vai mudar de ideia também”.
O restante da carta, que me comoveu bastante, até pela
minha origem semelhante, retirante do Sertão do Pajeú, reproduzo em tópicos na
coluna abaixo por entender tratar-se de uma joia rara nos dias tão nebulosos
que vivemos, em que há uma moçada abastada, com pais que dão todas as condições
para o estudo e a ele não se dedicam. Valeu, Antônia! Sua lição de vida me
comoveu e com certeza comoverá muita gente sensível neste País.
Sem
internet – “Por aqui, não é todo mundo que tem acesso à
internet. Quem tem, como eu, é só no celular. A gente não tem computador.
Quando tem o aulão na plataforma EducaPE, do governo do estado, eu assisto. Às
vezes, o vídeo fica travando porque a minha internet não é tão boa. No dia a
dia, eu estudo pelos livros e vejo vídeos no YouTube, mas sem a ajuda dos
professores, com aulas diárias para tirar nossas dúvidas, fica muito difícil.
Estou me virando como dá, mas tenho colegas que não conseguem estudar, como a
Jayne. Ela é muito estudiosa, mas não pode acompanhar nenhuma das atividades
porque na casa dela, no povoado Apertar da Hora, não tem internet”.

Defesa
do professor – “Falta muita coisa, principalmente
valorizar nossos professores. Eles ganham tão pouco para formar todas as
profissões do mundo. Os alunos que têm internet e computador em casa vão ter
mais vantagem para estudar agora que as aulas estão suspensas. Sei que, em
tese, se a pessoa se dedicar, ela consegue fazer uma boa prova. Os colegas que
não têm internet podem se juntar com outros colegas que têm, mas não é a mesma
coisa, ministro. Se o senhor pensar melhor, pelo lado de estudantes como minha
colega Jayne, vai perceber que o Enem pode ser adiado para o próximo ano. Eu
queria que o governo revisse isso, que não ache que é apenas uma gripezinha,
que olhasse para as pessoas carentes. O senhor tem que considerar toda essa
situação que estamos vivendo. É uma pandemia, ministro”.
No pau
de arara – “É verdade que nós já enfrentamos dificuldades
para estudar há muito tempo. No povoado que eu moro, o Mundo Novo, não tem
escola. Por isso, a gente precisa pegar um carro para chegar ao povoado Caruá.
O transporte é um caminhão que vocês aí conhecem como pau-de-arara. É quase uma
hora de estrada de chão. No período de seca, por ser um caminho cheio de
buracos, às vezes o carro dá o prego. No inverno, é comum que fique atolado, o
que nos obriga a voltar para casa a pé e ficar sem aula. Eu conheço muitos alunos
que terminam o terceiro ano e vão trabalhar nas plantações em Goiás. Quando eu
me deparo com uma coisa dessas, fico muito triste. Esses estudantes poderiam
ingressar em uma faculdade pública, mas eles acham que indo para Goiás vão
ganhar muito dinheiro. Pura ilusão. Quando acaba a plantação, eles ficam
desempregados”.

Convite ao ministro – O certo seria eles
irem para a universidade, para ter um futuro garantido. Mas é como se a
faculdade não existisse para essas pessoas. Essa é a realidade no nosso lugar.
Muitos saem à procura de empregos porque acham que é mais fácil, mas só com o
estudo a pessoa está garantida. Depois que se formar e arrumar um emprego bom,
aí sim a pessoa está feita na vida. Eu acho que o governo precisa valorizar
mais a educação para esses jovens terem mais oportunidade. Nós não temos uma
boa educação. Falta muita coisa, principalmente valorizar nossos professores.
Eles ganham tão pouco para formar todas as profissões do mundo. Era isso que eu
gostaria de dizer, ministro. Espero que o senhor tenha chegado até aqui. Sei
que aí de Brasília fica difícil conhecer outras realidades, mas, agora que já
sabe, espero que pense sobre o que leu.
Por
Magno Martins