segunda-feira, 26 de março de 2018

Recreio ensinava tanto quanto as aulas

O piso do recreio, quando eu estava no primário, era de terra batida. Não tem mais terra batida nas escolas assépticas de hoje em dia. Chão que a gente podia cavar buraquinhos para jogar bola de gude (bila). Chão que a gente ralava o joelho jogando futebol.

Recreio onde a gente socializava. Recreio onde a gente comprava filó e pão de queijo e relaxava entre as aulas de matemática e de ciências. Recreio ensinava tanto quanto as aulas.

Nos recreios descobri a quantidade de idiotas que existe neste planeta. Acho que todo mundo guarda na memória o nome, as expressões de terror, o sentimento de medo gerado pelo idiota do recreio. O meu era o Patrick. Todo mundo teve um Patrick na vida, pronto para expor você à execração pública no pátio de terra batida do recreio.

Se ele o escolhesse, naquele dia você seria o motivo da gargalhada de todos. Qualquer coisa serviria. Negão, mico-preto, burro, feio, baixinho, qualquer coisa serviria para o tribunal presidido pelo Patrick condená-lo. Cercariam você, enquanto Patrick iria agredi-lo física ou verbalmente. Ou ambos. Todos em volta seriam cúmplices.

Crianças precisam disso, dizem. Precisam de um alvo. Alguém que represente publicamente suas próprias fragilidades, fraquezas e vergonhas. Os Patricks vêm a calhar. São o veículo dessa humilhação pública.

Até hoje você vai ouvir quem diga que “bulling sempre existiu”.  É o jeito, talvez inconsciente, de se convencer que crianças precisam aprender a serem agredidas e a agredir nesse mundinho competitivo que inventamos.

Bobagem. Violência é só violência. Institucionalizada ou não.

Até hoje, enquanto alguns brincam de bola de gude num canto e outros comem filó, os Patrick continuam à espreita. Todos os dias.

Esquerda e direita são os novos quatro-olhos-gorducho-nanico. A Camila fala de uma amiga de infância que a bloqueou. Hoje a amiga voltou para dar mais um cutucão. O recreio faz isso.

Tira o pior das pessoas. Tira esses sentimentos viscerais e esfregam na cara da gente. Agora me ocorre que tinha um outro momento importante nos meus dias. Lá pelas cinco e meia da tarde, quando estava brincando na volta da escola, minha avó gritava para que eu subisse para tomar banho.

Pela janela do banheiro dava para ver o céu aberto, as vezes nublado, dos finais de tarde de Apodi; a água quentinha; o cheiro de sabonete misturado com o de bola de futebol.

Nessa hora eu me sentia feliz. A água levava embora o suor, a terra e o Patrick. Saudade desse chuveiro.


Por Mentor Neto

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