quarta-feira, 29 de novembro de 2017

A síndrome de honestidade

Quando o paciente entrou, a psicanalista não conseguiu conter a expressão de surpresa. Um senhor de terno bege, sem graça, com uma gravata pálida, solta no pescoço como num fim de dia.

A expressão era de derrota, olheiras profundas e cabelos brancos mal cuidados. Assustada, a psicanalista o encaminhou direto para o divã, sem nem mesmo uma introdução.

Sentou-se a seu lado, numa poltrona, e após uma pequena pausa perguntou:

– Então, o que trouxe você aqui?

O homem olhava fixamente para o teto procurando a resposta na luminária.
– Bom doutora… eu sou deputado federal. Quarto mandato…

– Compreendo…

– …e acontece, doutora, que minha orientação foi sempre a honestidade.

A mulher revira os olhos.

Há 15 anos atendendo em Brasília cansou de atender pacientes “honestos”.

– Ou melhor, eu era honesto, mas há uns dez anos comecei a tentar novas experiências e acabei recebendo uns recursos por fora, nas minhas contas. Eu sabia que aquilo não era eu, mas fui gostando mais e mais…a senhora sabe como é. O meio influencia…

– Entendo…

– Fui gastando em carros, mansões, mulheres, viagens. Virou uma obsessão pegar 10% ou 15% de tudo que aparecia na frente. Uma tara incontrolável! Dia e noite.

– E agora o senhor precisa de ajuda para largar esse vício, certo? – depois da Lava Jato esse era o problema mais comum em seu consultório. Corruptos arrependidos.

– Não doutora! É justamente o contrário.

– Como assim?

O deputado envergonhado, admitiu:

– Eu tô broxa doutora.

– Ah! Mas isso na sua idade eventualmente acontece, não prec…..

– Não doutora! Broxa de pegar meus 10%!

– Oi?

– Sei lá o que aconteceu. Foram tantas orgias financeiras, Ferraris, Paris, dólares nas malas da Suíça, que enjoei, entende?

– Mas isso é ótimo! Então você está livre da sua obsessão!– Ótima notícia?

Não doutora! A senhora não sabe como é Brasília. Se eu não voltar a comparecer vão começar a desconfiar da minha virilidade corrupta! Aí acabou para mim. Não serei chamado nem para a comissão de ética, que não paga nada.

Quando a sessão terminou, a psicanalista deixou escapar para si mesma:

– Fascinante. No instante seguinte surgiu a questão moral.

Será que ela poderia ajudá-lo a retornar a sua vida de promiscuidade corrupta?

Decidiu que sim. Não cabia a ela julgar e sim cuidar da felicidade de seu paciente. Verdade que ela estranhou a própria decisão, mas relevou.

Uma semana depois, nova sessão. O deputado entra angustiado.

– E então, doutora? Meu caso tem solução???

A psicanalista estava diferente, ele notou.

Tirou os óculos lentamente e olhou bem no fundo dos olhos do deputado:

– Solução? Claro que tem, querido – ela falou num tom de voz cúmplice – Aqui a gente tem um jeitinho para tudo.

– O que então? O que eu devo fazer?

A psicanalista jogou os cabelos para traz e, num tom malicioso, disparou:

– Antes precisamos combinar que, se eu curar você, podemos acertar aí um presentinho por fora, não? Quem sabe uns 10% das suas próximas “conquistas”, hein? hein?

Foi nessa hora que o deputado, vendo a psicanalista transfigurada, finalmente compreendeu de onde veio a sua doença.

A maldita síndrome era contagiosa.


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