domingo, 24 de setembro de 2017

Sombras que sofrem - a transcendental dignidade do silêncio

Por Marcos Pinto.

Já não  se  conta  o  tempo  para  as enigmáticas  pessoas  que encarnam e  personificam  sombras  que sofrem. Só vêem com os olhos  da alma, e  por  isso  sofrem  em súplicas  ardentes. Vagueiam por horizontes  indefinidos. Viveram todos os transes, sofrendo todas as dores. Carpem em vida todos os  pecados  cometidos, arrostando  dúvidas  e  dissabores, numa  espécie  de  ritual  tétrico  dos  que  morrem  espiritualmente  ainda  em  vida  material. Sombras que  sofrem em  sobrancerias  desusadas, alçadas aos  umbrais  da  transcendental  dignidade  do  silêncio. Refletem fé  e  energia  inquebrantáveis, forjados  em  momentos  angustiosos.  Silêncios que ressoam na  alma  a  melodia  das  tétricas  notas do  golpe  fatal.

Já não  vivem  o  caldeamento  das  contendas  íntimas. Já não  caminham  ansiosas para  perplexos  finais  eletrizantes. Já  não  vencem  e  castigam todos  os  que  se  lhes  mostrem  contrários. Estão  silentes  e  imersos   na  sinfonia  de  interesses  seletivos, pinçados  na   constância  das  virtudes  cristãs. São sombras  relativamente  atordoadas, porém  dignas  de  crédito no  limiar  da  espiritualidade  vivificante. O sofrimento contingência  as  emoções,  emoldurando-as  em  uma  espécie  de  indefinido  e  insípido  porvir. Entra  em  cena  a  tristeza  dominante, assumindo  posição  diametralmente  oposta  ao  arrojo  do  pretérito, tingido  com  as  imaculadas  cores  da  saudade.  Já  não  lhes  assediam  o  odor  e  as  minudências  das  iniquidades. São sombras  pródigas na  reprodução do que  ficou  congelado  na  alma  do  tempo.

A saudade  martirizante  dos  nossos  entes  queridos,  que  nos  antecederam   na  partida para  o  plano  espiritual, morde  o  atroz  silêncio  das  interrogações. Surge um  fugaz otimismo, que  esbarra  na  célebre  frase  do  celebrado  poeta  Crispiniano Neto, sintetizando  um  retrato  de  despedida  sem  a  esperança  do  retorno: "Sair  sem  partir/ ficar  quando  parte/ a  vida  reparte   teu  peito  em  metades".  Sombras envoltas  em  saudades  várias, que  se  distinguem  e  se  diferenciam  na  caudal  dos  ufanismos  divorciados  da  realidade.  Mesmo  espectrais  em  espirais  de  tristeza, são  como  raios  de luz  perseguindo  a  escuridão da  ignorância  humana, escondida  pelo  infame   véu  do  oportunismo. Não  espreitam  mais  nem  estreitam   cumplicidade  com almas  penadas.  Outrora, protagonistas  afoitos  e  aventureiros. Hoje, personagens  imersos  na  faixa  silente  do  esquecimento.

Desapareceram na  poeira  do  tempo, existindo  apenas   em relatos  superficiais  de  alguns  raros  amigos, ou  apenas  em  páginas  amareladas  de  livros  esquecidos  por  seus  donos  em  estantes  desconhecidas.  Personificam  indagações  silenciosas  que, não  raro,  derivam  para  o  aprendizado  com  pecadores  desatinados  e  espasmódicos. Bafejadas  por  efêmeros  sopros  de  tenaz  ilusão, emergem  de  seus  tenebrosos  recalques  e  frustrações, para  irem  à  forra  urgente  e  sobejamente. Nesse compasso, o  remorso  corrói-lhes  suas  entranhas, fazendo-os  sumirem  penitentemente em  corpo  e  alma.

São  sombras  que  ruminam  refluxos  de  sonhos  e  ideais  nunca bafejados  pelos  liames  da  concretização. Sob  ruidosos  baques  impostos  pelo  famanaz  destino, pairam  prosternados   na condição  de  fantasmas  do  tempo, à  espera   da  eternidade  intermitente  e  avassaladora.  Não  tem  como  angariarem   contraprestação  divina, por  não  serem   detentores  do  quinhão  da  sinceridade   devocional.  Arquétipos  de  interesses  escusos, poderão  ter  um  abatimento  na  obrigação  do  pagamento  dos  pecados, com  o  longo  decurso dos  sofrimentos  e  tribulações    vividos  sob  a  égide  da  resignação  silenciosa.  Algumas  sombras  esboçam  pérfidas  reações, assoberbando-se  de  atitudes  típicas  de  anjos,  arcanjos  e  querubins.  Não há  como  evitar  o  descortinar  de uma  mística  degringolante  das  ilusões.

O  ponto  de   equilíbrio  entre  o  sofrimento  e  a  dor, perenes  e  presentes  nas  sombras  que  sofrem, surge num  revide  sem  algoz, delineando    um  desenlace  indicador  de  que  "a  morte  nunca é  sina. É vida  com  outro   nome".

Inté!

Marcos Pinto é advogado, historiador e escritor.

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