segunda-feira, 19 de março de 2012

[leia] A quem serve as águas da Barragem de Santa Cruz?

Na Semana da Água Agricultores (as) Apodienses questionam a utilização das Águas da Barragem de Santa Cruz: Dez anos de um sonho inacabado

A redenção do Vale do Apodi. Foi por isso que construíram a barragem Santa Cruz do Apodi. O segundo maior reservatório hídrico do Estado, com capacidade para 600 milhões de metros cúbicos de água, completou, agora em março, dez anos de inaugurada, mas sem ainda cumprir o objetivo ao qual foi proposta.

O espelho d'água que corta as cercanias de três municípios do Oeste potiguar modificou a paisagem e encheu os olhos de milhares de pessoas. A imensa parede de concreto que se ergue no estreito de duas serras virou uma das principais atrações turísticas do interior, atraindo milhares de visitantes.

Pelo menos dez barraqueiros vivem do turismo desde que sangrou em 2004. O Governo do Estado investiu R$ 3 milhões na construção de um balneário para atender a esse público, mas que espera ser inaugurado desde 2010.

A tomada d'água sempre aberta para regular o nível do reservatório é o que garante a perenização do rio Apodi, que corta todo o Vale. Além disso, a aspersão da água forma uma espécie de leque que, por lá, é chamado de "véu" e enche os olhos dos banhistas. 

Com água no rio, ficou mais fácil manter as produções já existentes e até ampliar a de arroz, que vive um dos melhores momentos das últimas décadas. Pelo menos outros 50 produtores entraram na cultura e seguem colhendo safras médias de 200 alqueires cada.

Os pescadores também viram na barragem uma esperança a mais. Dos 500 cadastrados na colônia Z 48, pelo menos 150 aproveitam o manancial indiretamente na criação de peixe em tanques-redes. O projeto experimental foi introduzido pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), com apoio da Empresa de Pesquisa Agropecuária do RN (EMPARN), e mantém 100 gaiolas, embora ainda não possua outorga d'água.

Mas, esses números ainda não são suficientes para cumprir o objetivo proposto. Mesmo depois de uma década de inaugurada e pelo menos oito anos despejando água diariamente, a barragem Santa Cruz do Apodi ainda não significa desenvolvimento para milhares de famílias que sonharam com ela durante 92 anos.

Muito já se discutiu e até um projeto foi anunciado, mas por enquanto os que vivem ao pé do muro de concreto e veem o açude inundando seus quintais ainda dependem dos velhos carros-pipas para beber um copo de água.

O homem que fez da barragem sua enciclopédia

O mecânico de bicicletas e inventor Chico Augusto é o homem que mais conhece a barragem Santa Cruz do Apodi, talvez mais até de quem a construiu. Desde a inauguração ele pesquisa, guarda e entalha informações sobre sua mais preciosa obsessão.

De acordo com ele, no último dia 15 completou-se 102 anos desde que o projeto da barragem foi proposto. O primeiro projeto foi pensado em 1910, pelo então presidente Nilo Peçanha, criador do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), e tinha uma dimensão bem maior do que a de hoje. Na época, o governador do Estado era Alberto Maranhão, e o prefeito de Apodi, João Jázimo de Oliveira Pinto.

A intenção do presidente era reduzir o sofrimento dos nordestinos com açudes, vez que no século 19 foram registradas 14 grandes secas na região. O açude Santa Cruz, como foi chamado inicialmente, teria 3km de parede de barro e 71 metros de altura. 

"A barragem Santa Cruz foi terminada em fevereiro de 2002 e inaugurada no dia 11 de março desse ano, faltando 4 dias para completar 92 anos do primeiro projeto", contou Chico. O projeto atual tem 1.670 metros de parede de concreto armado e 820 metros de barro, formando uma parede de 2.480 metros de comprimento e 57 metros de altura. Cobre 3.260 hectares e, para ser construída, precisou desapropriar 50 famílias. Desde que foi inaugurada, sangrou três vezes: em 2004, 2008 e 2009.

Uma inauguração para convidados

"Um fenômeno inesquecível/ Santa Cruz atravessou/ Com tantos credenciados/Quem na área se alojou/Foto local que não brilha/Das setenta e cinco famílias/Nenhuma pessoa entrou." Esse verso faz parte de um longo poema escrito pela poeta e professora aposentada Francina Mota, para criticar o fato de nenhuma pessoa da localidade de Santa Cruz ter podido participar da inauguração da barragem Santa Cruz, em 2002.

O evento, que contou com a participação dos então presidente Fernando Henrique Cardoso e governador Garibaldi Filho e outras autoridades, era apenas para convidados e não incluía nenhum morador de lá. O pior é que eles só souberam disso quando tentaram se aproximar da área.

"Parece uma coisa simples, mas para nós foi uma tristeza", disse Francina Mota, hoje com 68 anos, que tem a barragem no quintal de casa. De acordo com ela, o esquema de segurança era tão grande que na tarde da inauguração ninguém da comunidade pôde mais sair de casa. Há relatos de pessoas que tinham ido à feira de Umarizal (que acontece às segundas-feiras) e tiveram de ficar esperando na estrada até acabar a cerimônia para poder chegar em casa. "Seu Estácio João de Paiva estava trabalhando em seu cercado e quando foi almoçar não teve mais permissão de voltar ao serviço", relata Francina.

Parece que esse momento, tão lastimado pelas famílias de Santa Cruz, era um aviso de que, aos moradores, só sobraria a distância das águas. A própria família de dona Francina, que vive, em parte, da agricultura, nunca se beneficiou da água da barragem, a não ser pelo rio que passa perene com meio metro. Tanto é que, toda casa das sete ou oito comunidades que circundam a barragem só no município de Apodi, tem uma cisterna para captar água de chuva. O reservatório banha ainda terras de Itaú, Severiano Melo e Umarizal.

O agricultor Pedro Viana da Costa, "Neto da Cápua", sabe bem o que é olhar para o espelho d'água e não ter o que beber. Ele, assim como toda a comunidade do sítio Cápua, distante uns 10km de Santa Cruz, depende do programa carro-pipa do Governo Federal para se abastecer. "O Exército é quem faz o abastecimento, mas como é muita família, nem sempre a água dá pro mês", disse.

A sorte é que na propriedade vizinha existe um açude que demora a secar, senão os bichos passariam sede. O pequeno manancial pertence a seu Idalino Dantas Panplona e foi construído pelo seu pai (já falecido), em 1937. Abastecido pela água da chuva, a pequenez do alagado é um contraste frente a gigante Santa Cruz, que se impõe no horizonte. Para seu Idalino, a barragem foi uma grande obra, mas até agora não beneficiou ele ou sua comunidade em nada. "Aqui nós continuamos plantando de sequeiro e bebendo água de carro-pipa", disse.

Na comunidade de Lagoa Rasa, distante pelo menos 20km do sítio Cápua, no sentido da cidade de Apodi, a situação não é diferente. Segundo a agricultora Antônia Gilvânia Mota, por lá passa o rio Apodi, mas a água não serve para o consumo humano. "Nós temos a mesma vida de antes da barragem. Por enquanto, os únicos beneficiados não são daqui do Vale do Apodi", concluiu.

Um projeto que não passa de um projeto

"A barragem Santa Cruz não foi feita para melhorar a vida de ninguém. Ela foi feita para atender a demanda do agronegócio." Essa é a opinião do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apodi, Francisco Edílson Neto, corroborada pelos agricultores Francisco José Morais Junior e Francisco Agnaldo de Oliveira. Para Edilson, tem muita coisa em jogo nesse projeto que foi pensado para beneficiar os que vivem nos perímetros irrigados.

Ele é um dos líderes do movimento campesino que se opôs ao projeto do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), que queria investir R$ 280 milhões para levar a água da barragem para irrigar a Chapada do Apodi a mais de 30km de distância e numa altura superior a 60 metros. A proposta foi aprovada e os recursos só não foram liberados devido à intervenção dos movimentos sociais, que fez repercutir esse assunto internacionalmente.
Edílson Neto defende que a ideia seja remodelada à proposta do professor João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ele sugere o aproveitamento de todos os potenciais para reduzir custos e atender uma demanda maior de pessoas de forma sustentável, e sem precisar desapropriar ninguém, como propõe o Dnocs.

Abner quer a irrigação do vale por gravidade, visto que a água da barragem está a 57 metros de altura, perenizar também o rio Umari, beneficiando Caraúbas e Felipe Guerra e implantar uma miniturbina para geração de energia, viabilizando a irrigação da chapada. "Além disso, com uma medida governamental é possível implantar a tarifa verde, reduzindo enormemente o custo de energia dos pequenos produtores", disse Edílson Neto.

O projeto, chamado de Padre Pedro Neefs, numa referência ao padre holandês (ainda vivo) que primeiro implantou ações sustentáveis no Vale do Apodi, quer evitar a repetição de erros comuns no Brasil. A pesquisa de João Abner constatou que, nos últimos 40 anos, a União investiu mais de R$ 3 bilhões para implantar, no Nordeste, cerca de 90 pequenos, médios e grandes projetos de irrigação. Hoje, dos 250 mil hectares infraestruturados por essa montanha de dinheiro público, apenas 100 mil produzem.

Outro exemplo vem do Ceará, onde a maioria dos 14 perímetros de irrigação implantados e administrados pelo Dnocs apresenta precária infraestrutura, baixa produção e, em muitas áreas, a pobreza ronda os lares dos colonos. "Cada projeto tem seus problemas "próprios, mas a dificuldade de irrigação, a falta de assistência técnica e a precariedade de canais, de diques, de drenos, das estradas internas e a baixa produtividade são um quadro comum às áreas de produção", diz o professor.

Fonte: Jornal DeFato

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